DIREITO PROCESSUAL CIVIL – Desconstituição da Coisa Julgada Inconstitucional nos Juizados Especiais

O Supremo Tribunal Federal estabeleceu que a coisa julgada inconstitucional no microssistema dos juizados especiais pode ser contestada por meio de simples petição na fase de execução, apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória, quando o título transitado em julgado divergir de interpretação constitucional fixada pela Corte.

O Plenário do Supremo Tribunal Federal enfrentou importante questão sobre a possibilidade de desconstituição da coisa julgada inconstitucional no âmbito dos juizados especiais, sistema processual que não admite ação rescisória. A decisão, proferida na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 615, relatada pelo ministro Luís Roberto Barroso e com acórdão redigido pelo ministro Alexandre de Moraes, estabeleceu novos parâmetros para a matéria e fixou teses vinculantes que deverão orientar a atuação dos juizados especiais em todo o país.

A Corte reconheceu que a proteção à coisa julgada constitui expressão da segurança jurídica que permite a estabilização das soluções dadas aos litígios. Essa proteção, contudo, não possui caráter absoluto e pode ser ponderada frente a outros princípios constitucionais, especialmente o da supremacia da Constituição. Essa premissa fundamenta a possibilidade de relativização da coisa julgada quando o título executivo judicial estiver em contrariedade com interpretação constitucional firmada pelo Supremo Tribunal Federal.

O Tribunal decidiu que a norma contida no artigo 59 da Lei 9.099/1995, que proíbe a utilização de ação rescisória no microssistema dos juizados especiais, não pode representar obstáculo à rediscussão da matéria quando o título transitado em julgado divergir de interpretação constitucional fixada pelo STF. Essa vedação legal não pode servir de blindagem a decisões judiciais que contrariem a interpretação da Constituição estabelecida pela Suprema Corte, sob pena de comprometer o próprio princípio da supremacia constitucional.

Nesse contexto, o acórdão estabeleceu que a desconstituição do título executivo nos juizados especiais pode ser pleiteada por meio de arguição de inexigibilidade, apresentada por meio de simples petição. Essa solução se justifica pela necessidade de adotar procedimentos judiciais mais céleres e informais aos conflitos de menor complexidade, mantendo coerência com os princípios que orientam o microssistema dos juizados especiais. A simplicidade procedimental característica desse sistema não pode resultar em impossibilidade de correção de decisões inconstitucionais.

A aplicação desse mecanismo nos juizados deve seguir as premissas já definidas pelo STF para a justiça comum, consolidadas no precedente da Ação Rescisória 2.876. Primeiro, a alegação de inexequibilidade deve ser admitida mesmo se a norma em que se baseia o título executivo judicial for declarada inconstitucional pelo STF após o trânsito em julgado da sentença exequenda. Essa orientação reconhece que a interpretação constitucional firmada pela Suprema Corte deve prevalecer independentemente do momento em que foi proferida, seja anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão questionada.

Segundo, a postulação deve ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória, conforme previsto nos artigos 525, parágrafo 15, e 535, parágrafo 8º, do Código de Processo Civil de 2015. Essa exigência assegura que a possibilidade de desconstituição da coisa julgada inconstitucional não seja indefinida no tempo, estabelecendo limite temporal que preserva a segurança jurídica e impede que situações consolidadas sejam questionadas após transcorrido prazo razoável.

Terceiro, se o STF não modular os efeitos da decisão paradigma, os efeitos retroativos da desconstituição da coisa julgada inconstitucional não devem exceder os cinco anos anteriores à data da arguição da inexigibilidade do título executivo. Essa regra estabelece prescrição intercorrente que limita temporalmente os efeitos patrimoniais da desconstituição, equilibrando a necessidade de correção da inconstitucionalidade com a proteção à estabilidade das relações jurídicas.

O Plenário, por maioria de votos, declarou incidentalmente a inconstitucionalidade do artigo 525, parágrafo 14, e do artigo 535, parágrafo 7º, ambos do Código de Processo Civil de 2015. Esses dispositivos estabeleciam que a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre inconstitucionalidade deveria ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda para fundamentar a inexigibilidade do título. A declaração de inconstitucionalidade afasta essa limitação temporal, permitindo que decisões posteriores do STF também possam fundamentar a arguição de inexigibilidade.

A Corte julgou procedente a ação para determinar aos Juizados Especiais da Fazenda Pública do Distrito Federal que apreciem as alegações de inexequibilidade do título judicial formuladas pelo autor, aplicando solução compatível com a declaração, em controle abstrato e concentrado, da constitucionalidade da expressão “exclusivamente” do artigo 20, inciso I, da Lei 5.105/2013 do Distrito Federal. Essa lei trata da gratificação de ensino especial a professores que atendem alunos com necessidades educativas especiais, e a decisão determina a extensão desse benefício em conformidade com a interpretação constitucional firmada no Recurso Extraordinário 1.287.126.

O Tribunal fixou teses vinculantes sobre a matéria.

A primeira tese estabelece que “é possível aplicar o artigo 741, parágrafo único, do CPC/1973, atual art. 535, § 5º, do CPC/2015, aos feitos submetidos ao procedimento sumaríssimo, desde que o trânsito em julgado da fase de conhecimento seja posterior a 27.08.2001”. Essa data corresponde à entrada em vigor da Lei 10.352/2001, que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro a possibilidade de arguição de inexigibilidade de título judicial fundado em lei ou ato normativo declarado inconstitucional.

A segunda tese afirma que “é admissível a invocação como fundamento da inexigibilidade de ser o título judicial fundado em aplicação ou interpretação tida como incompatível com a Constituição quando houver pronunciamento jurisdicional, contrário ao decidido pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal, seja no controle difuso, seja no controle concentrado de constitucionalidade”. Essa orientação equipara as duas formas de controle de constitucionalidade para fins de desconstituição da coisa julgada inconstitucional, reconhecendo que tanto as decisões em controle concentrado quanto aquelas proferidas em controle difuso possuem igual força para fundamentar a inexigibilidade do título.

A terceira tese estabelece que “o art. 59 da Lei 9.099/1995 não impede a desconstituição da coisa julgada quando o título executivo judicial estiver em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, sendo admissível o manejo de simples petição, a ser apresentada em prazo equivalente ao da ação rescisória”. Essa orientação supera o óbice procedimental representado pela vedação à ação rescisória nos juizados especiais, criando mecanismo alternativo e adequado às características desse microssistema processual.

O acórdão estabeleceu ainda que, em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da simples petição ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. Essa possibilidade de modulação dos efeitos temporais assegura que a Corte possa calibrar as consequências de suas decisões conforme as peculiaridades de cada situação, evitando impactos desproporcionais sobre a ordem jurídica e social.

Na ausência de manifestação expressa do STF sobre a modulação temporal, os efeitos retroativos de eventual desconstituição da coisa julgada não excederão cinco anos da data da apresentação da simples petição, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. Essa regra supletiva estabelece parâmetros objetivos para a retroação dos efeitos quando a Corte não se manifestar expressamente sobre a questão temporal, conferindo previsibilidade e segurança jurídica ao instituto.

O Tribunal também fixou que “o art. 59 da Lei 9.099/1995 também não impede a arguição de inexigibilidade quando o título executivo judicial estiver em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, seja a decisão do Supremo Tribunal Federal anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (CPC, arts. 525, caput e 535, caput)”. Essa tese consolida o entendimento de que o momento da decisão do STF é irrelevante para fins de arguição de inexigibilidade, ressalvadas as hipóteses de preclusão previstas no próprio Código de Processo Civil.

O Plenário ainda modificou a tese firmada no Recurso Extraordinário 611.503, que tratava do Tema 360 da repercussão geral. A nova redação estabelece que “são constitucionais as disposições normativas do parágrafo único do art. 741 do CPC, do § 1º do art. 475-L, ambos do CPC/73, bem como os correspondentes dispositivos do CPC/15, o art. 525, § 1º, III e §§ 12 e 14, o art. 535, § 5º. São dispositivos que, buscando harmonizar a garantia da coisa julgada com o primado da Constituição, vieram agregar ao sistema processual brasileiro um mecanismo com eficácia paralisante de sentenças revestidas de vício de inconstitucionalidade qualificado, assim caracterizado nas hipóteses em que a sentença exequenda está em contrariedade à interpretação ou sentido da norma conferida pela Suprema Corte, seja a decisão do Supremo Tribunal Federal anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (CPC, arts. 525, caput e 535, caput)”.

A decisão proferida na ADPF 615 estabelece importante equilíbrio entre a estabilidade da coisa julgada e a supremacia da Constituição, assegurando que o microssistema dos juizados especiais não se torne refratário às interpretações constitucionais firmadas pelo Supremo Tribunal Federal. Ao criar mecanismo específico e compatível com as características procedimentais dos juizados, a Corte harmoniza os princípios da celeridade, informalidade e simplicidade que orientam esse sistema com a necessidade de conformação das decisões judiciais à interpretação constitucional estabelecida pela Suprema Corte, conferindo maior coerência e racionalidade ao ordenamento jurídico brasileiro.

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